segunda-feira, 12 de outubro de 2020

Infância

 Falar de infância nem sempre é fácil. Nasci em 62, década de grandes descobertas e avanços. Fomos à Lua e todos queríamos ser astronautas. O futuro era uma promessa de coisas fantásticas. 

Embora, de acordo com alguns pontos de vista eu fosse uma privilegiada, minha infância acabou muito rápido. Era uma criança-adulta, daquelas que iam nas reuniões de pais e mestres dos meus irmãos, que ia ao supermercado fazer as compras e ficava responsável pelo dinheiro e pagamentos da casa quando não havia nenhum adulto por perto, o que não era raro. 

Tive a sorte e o dom de aprender rápido. Lia e escrevia aos 3 anos. Isto me abriu um universo nos livros. Era uma devoradora compulsiva de livros e ia à livraria todos os sábados de manhã com meu pai, na Universal, ao lado do Términus. Me sentia feliz naquele “útero” meio escuro, cheio de possibilidades, capas coloridas, e palavras que me carregavam para outros mundos. 

Naquela época, sábado era dia do meu pai. Havia quase um ritual, livraria, casa do tio Jorge, almoço na vó (de preferência charutinho de folhas de uva), missa com a tia Nilze, lavar o carro ou fazer alguma consulta domiciliar. Íamos todos os quatro (mais a Marcília para cuidar do caçula), no Opala branco que durou duas décadas. Meu pai colocava as fitas K7 no “tape”, fitas que ele guardava num isoporzinho e que iam de Verdi à Inezita Barroso, passando por canções italianas que nos meus ouvidos poderiam ser japonesas (especialmente se os verbos fossem no futuro, com todos aqueles “partirò, tornerò”).  Agora, esta ideia me faz sorrir. 

Eu estudava numa escola católica tradicional. Em 1970, quando meus pais se separaram, ser “filho de  desquitado” era como estar com doença malígna e contagiosa. E eu ouvi muitas vezes: “eu não posso brincar com você”, “eu não posso sentar do seu lado”. Não fazia muito sentido para uma criança de 7 anos que, de repente, você se tornasse “intocável“.  Mas, a gente se adapta rápido, e a importância das rejeições vai sendo hierarquizada. 

Serviu para aprender que as aparências, para alguns, valem mais que a essência. Talvez seja uma característica humana, porque o tempo passou, mas esta situação é sempre mais frequente. Infelizmente, muitas destas crianças, acabaram vivenciando a separação de seus próprios pais algum tempo depois. E também sofreram. 

Apesar de tudo, das feridas e das cicatrizes, acho que fui feliz do meu jeito. Ser criança tem este dom de cura.  Um potencial imenso de ver beleza onde não há, de regeneração e sobrevivência.

Agora, que mais de 50 anos se passaram, eu preciso ainda buscar em mim a resiliência da infância. Esta capacidade mágica de seguir em frente e esperar no futuro, este dom de sonhar e cancelar o que não vai bem. 

E resgatar a imaginação, a alegria simples e a curiosidade miraculosas. 

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